A presidenta Dilma Rousseff, ao lado dos quatro ex-presidentes da República vivos, instalou nesta quarta-feira 16 a Comissão da Verdade, cujo objetivo, exposto na lei 12.528, é “examinar e esclarecer graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1946 e 1988. Antes mesmo de sua instalação, a comissão se viu envolta em uma celeuma: a comissão deve focar apenas as violações cometidas por agentes do estado ou também ofensas aos direitos humanos realizadas por determinados setores da luta armada? Esta discussão é torta, deslocada da realidade e encontra suas raízes numa interpretação falsa do que houve em 1964.
Dilma e os ex-presidentes Lula, Fernando Collor, José Sarney e Fernando Henrique. Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula |
A discussão fez dois ex-ministros trocarem acusações. Nelson Jobim, ministro da Defesa nos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma, alardeou um acordo supostamente firmado na época da redação do texto. Segundo Jobim, o acordo previa que ações da esquerda armada também seriam investigadas. Paulo Vannuchi, ex-ministro da secretaria de Direitos Humanos da Presidência, acusou Jobim de mentir.
A postura de Jobim ecoa as posições de alguns setores militares. O general da reserva Marco Antônio Felício da Silva, afirmou ao Estado de S.Paulo que o objetivo da comissão é colocar os grupos armados “como democratas e defensores da liberdade e dos direitos humanos quando, no passado, desejavam a derrubada do governo e a instalação de uma ditadura do proletariado por meio da luta armada, usando do terrorismo”. O que está por trás deste tipo de pensamento? Não é preciso ter dúvidas. Para muitos brasileiros, incluindo diversos militares, o que ocorreu em 31 de março de 1964 foi correto. Foi, para eles, não um golpe, mas sim uma revolução para impedir a suposta tomada de poder por comunistas. Essa versão serve para esconder o fato de que o golpe foi um levante, militar e civil, apoiado inclusive por empresários e veículos de comunicação, contra um governo frágil e de pouca habilidade política cuja atuação indicava a redução de privilégios de algumas das elites nacionais.
Essa argumentação desconsidera dois aspectos fundamentais. O primeiro confunde o que houve no Brasil entre 1964 e 1985 com uma guerra civil. Os crimes da esquerda, entre eles atentados terroristas, já foram investigados e julgados. Os militantes anti-regime eram, do ponto de vista da lei, criminosos comuns. Alguns dos processos contra eles se deram em tribunais que consistiam clamorosas farsas. Houve até condenações à pena de morte, como a do ex-militante Ottoni Fernandes Júnior. Foi justamente na busca a esses setores da esquerda que o regime de exceção da época, ilegítimo por não ter sido eleito, cometeu graves violações de direitos humanos até hoje jamais investigadas.
O segundo aspecto deixado de lado por quem advoga peso igual para as violações cometidas pelo estado e por civis é que os dois tipos de violência não podem, de forma alguma, ser igualados. O Estatuto de Roma, base do Tribunal Penal Internacional, estabelece que crimes contra a humanidade são “ofensas à dignidade humana, graves humilhações e degradação” contra “um ou mais seres humanos” que sejam “parte de uma política de governo ou toleradas por um governo ou autoridade”. No Brasil, foi exatamente isso o que houve. Agentes do estado, cuja missão era zelar pelos direitos daqueles sob sua custódia, violaram sistematicamente, sob ordens superiores e cadeia de comando, esses direitos e também as constituições vigentes na época. Entre os crimes citados no Estatuto de Roma estão três que foram amplamente cometidos pelo estado brasileiro: assassinato, tortura e perseguição política. E por que há pesos diferentes para a violência estatal e para a cometida por civis? Porque um mundo civilizado simplesmente não pode conviver com estados que cometam crimes contra sua própria população.
A Comissão da Verdade tem um objetivo específico e muito claro. Ela não foi criada para esconder que muitos setores da esquerda nos anos 1960 e 1970 eram também pouco ou nada democráticos, para esquecer atentados e suas vítimas ou para dizer que o sistema de indenização aos prejudicados pela ditadura é perfeito. A comissão é uma tentativa de contar a verdadeira história das violações de direitos humanos que o estado brasileiro cometeu contra brasileiros e imortalizar este drama para que ele nunca mais se repita.
(*) Do Carta Capital